A névoa



 “Sumir-me-ei entra a névoa, como um estrangeiro a tudo, ilha humana desprendida do sonho do mar e navio com ser supérfluo à tona de tudo” (Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares -heterônimo de Fernando Pessoa)


Eram seis da manhã e ela ainda estava nervosa depois de uma noite insone. Ele não havia mandado foto. Ela não sabia o que ia encontrar e nem para o que estava embarcando. Já fazia muito tempo que ela vivia em brumas, como se vivesse por mero capricho sendo impelida ao sabor das ondas que os acontecimentos geravam, lançando-a de um lado para o outro sempre a deriva.

Sua mãe sempre dizia que ela parecia ser um barco a vapor de caldeira violenta e com uma fúria constante que o impelia sempre na direção oposta da qual deveria ir, pronto para se arrebentar na primeira rocha que aparecesse pelo caminho.

Ela não sabia bem quando essa letargia começou. Só sabia que desde pequena não conseguia discernir bem os acontecimentos de sua vida e que sempre quando tentava puxar pela memória a resposta era sempre um grande vazio de sombras, sem cheiros, sem gostos e sem afetos. Poucas ou raras passagens ainda permaneciam em alguma das caixas empilhadas em sua mente à qual ela ainda tinha acesso. Talvez o pavor de encarar a si mesma fizesse com que ela guardasse todas as demais em um local onde ela nunca poderia chegar, mesmo se quisesse.

A mesma letargia que a impeliu para o primeiro homem de sua vida era essa que agora a movia. A mesma névoa que tinha nos olhos quando buscou em um amor de terceira categoria o carinho que achava que merecia, era a que a entorpecia enquanto pegava sua mala e a despachava no balcão daquele pequeno aeroporto.

Ela não sabia o que a esperava. Não havia clareza na proposta e nem tampouco em seu objetivo. Durante o tempo em que conversaram, o que ele prometia com sua voz rouca pela idade era uma oportunidade de fazer dinheiro, conhecer novos ramos e de viajar o mundo. Era tudo o que ela queria. O dinheiro sanaria as dívidas deixadas pelo seu último romance malsucedido e viajar o mundo era tudo o que ela precisava para fugir para bem longe de tudo o que ela não suportava.

Desembarcar foi fácil e entrar no táxi também. A névoa sempre presente tornava as coisas mais fáceis. Desde pequena ela desenvolvera a capacidade de desfocar os olhos para ver com mais clareza os desenhos que fazia e os defeitos que necessitavam da correção do lápis ou do esfuminho já gasto. Ela sempre gostou dos olhos… os olhos eram sempre os primeiros a surgir ao primeiro toque do grafite no papel rugoso.

A neblina cobria seus olhos quando apertou a mão enrugada dele pela primeira vez e viu seu rosto trinta anos mais velho que o dela. Entorpeceu seus sentidos quando ele a informou que havia reservado apenas um quarto para os dois e que ela não precisava se preocupar já que havia duas grandes camas disponíveis. Abafou seus ouvidos quando ela, escondida, o ouviu falar ao telefone com um de seus funcionários de confiança sobre a inexperiência dela no ramo e da pouca utilidade que ela teria para seus propósitos naquele país estranho e quente. Fez embaçar sua visão quando ele tirou a roupa pela primeira vez dizendo que aquilo tudo era normal e esperado e que ela não precisava ser tão pudica com relação a tudo.

Na sucessão de acontecimentos ela não se lembra de quase nada e só acordou de seu transe quando já era tarde e o membro dele estava em sua boca enquanto lágrimas rolavam em seu rosto. Evocando a névoa que a cobriu novamente, jurou um amor que não sentia e viu no espelho azul acinzentado dos olhos dele uma mulher que ela nunca foi.

Ela não se deu por dinheiro, por amor ou por status. Também não o fez por depravação ou por gozo, o qual não sentiu em momento algum enquanto estava com aquele corpo macilento na cama. Ela não sabia em que momento da vida ela havia se separado de seu corpo. Em que momento começou sua busca desenfreada pela punição por tudo o que era e tudo o que sentia.

Ela só sabia que cada homem com quem saia e cada corpo que possuía a carcaça de si mesma, era como uma confirmação de tudo o que ela mais temia.  De que nada foi e nunca seria o suficiente.

Comentários

Postagens mais visitadas