Reflexo


Não me recordo bem qual foi o dia em que me dei conta que odiava minha mãe. Não sei se por tudo que ela representa, se por tudo que deixou de fazer e eu achava que deveria ser feito, se pela sua imensa ignorância acerca de tudo que me era relevante, se pela suprema subserviência com a qual fingia atender a todos, se pela malévola mania de manipular todos a sua volta, sempre com uma lágrima pronta para rolar e enternecer o coração do filho mais frágil, criando a discórdia.

Minha mãe era uma política isso sim! O controle era tudo o que ela queria. O controle que não teve quando moça e foi obrigada a se casar para deixar de ser um fardo para meus avós. Entre encenações e maquinações das quais nenhum de nós tinha conhecimento, ela traçava seus planos sempre passando por cima dos meios para chegar a seus fins. Mais tarde eu chegaria a dizer que isso a enquadrava como sociopata, afirmação esta que não foi muito bem recebida. Não seria todo político nato um sociopata?

Dizem que em certo momento temos que ‘enterrar’ nossos pais metaforicamente para que possamos seguir com a vida e criar nossas próprias histórias. Não sei até que ponto isso é verdade, mas sei que no meu caso só consegui me ver como um ser autônomo e independente quando passei a odiar ou ao menos desprezar os vínculos familiares.

Nunca me senti confortável em minha família e isso também atribuo à ela, já que era ela sua pedra angular, mantendo unidas diversas rochas diferentes em um arco tortuoso que mal se sustentava de pé. Sempre tive a sensação de que estava em um lugar no qual eu não cabia. Nada podia me tirar aquela sensação de uma princesa nada delicada, que calça número 40 mas que a todo momento tenta se convencer de que é capaz de apertar os limites de seu pé até que ele caiba em um sapato de vidro barato de ordinário número 36.

Eu poderia descrever mil e uma passagens onde hoje me vejo como vítima da matriarca e das situações mirabolantes que ela criava com sua astúcia de rapina. Mas tais recordações se desvanecem em uma vergonha que me impediria até mesmo de escreve-las aqui, onde tudo é permitido. De tanto vê-la ‘vítima’, não me permito tal papel, nem mesmo quando a ele faço jus. Acho que este seja o seu mais nefasto legado.

Só digo que odeio. Não quero conversa. Não quero telefonemas. Não quero proximidade. A simples ideia de um abraço me revolta o estomago e me faz querer correr para o local mais longe possível. A recordação de sua voz me faz desejar a surdez ou escutar um funk daqueles que faria corar a mais indecorosa das putas.

Pode ser que tudo isso seja fruto de uma imaturidade que permanece. Provavelmente é o que qualquer pessoa que leia isso vai pensar. Eu penso isso com frequência, mas o fato permanece o mesmo bem como a falta de vontade de tornar a vê-la.

Me pergunto se amanhã será a vez de minha filha buscar alívio em uma escrita rota para solucionar as aflições que eu causei ou as que eu deixei de amparar. Será que ela vai se valer de um pedaço de papel, ainda que virtual, para me culpar por todas as dúvidas que possui, os ‘nãos’ que não consegue dizer ou os amores que não conseguiu cultivar?

Odeio. Odeio e é só. E momento em que eu mais a odeio — odeio com todas as minhas forças — é quando olho espelho e vejo em mim o seu reflexo. De tudo o que sou, ela é a parte que grita mais alto e que faz de mim tudo o que eu sou.

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