Queda livre

 


         

"Prisioneiro, dize-me, quem foi que fez essa inquebrável corrente que te prende? -  perguntava Tegore.  - Fui eu - disse o prisioneiro - fui eu que forjei com cuidado esta corrente” (Rubem Alves)

"Esse azul não me cai bem", pensou enquanto olhava sua figura que lhe parecia rechonchuda no reflexo do grande espelho que tinha em seu quarto.  O tailleur azul mesclado com branco em linho fino um pouco grosseiro dava um ar de secretária ainda que já fosse uma jovem advogada em plena atividade.  Não importava quantos quilos emagrecesse, ela simplesmente não conseguia se ver no espelho sem que sua própria percepção manca distorcesse seu reflexo.

Era a segunda vez que se aprontava de uma forma especial, esperando encontra-lo.  Ele prometera chegar as dez horas, mas ela já justificava mentalmente qualquer atraso antes mesmo que acontecesse, lembrando a si mesma dos quilômetros que os separavam e da última vez em que ele prometeu vir mas desmarcou na última hora.  Para si ela guardava o melhor carrasco enquanto que para os homens que cruzavam seu caminho ela dedicava sempre as melhores desculpas.

Enquanto pintava o rosto, pensava nos motivos pelos quais sempre se envolvia em relacionamentos duvidosos, mesmo quando todas as variáveis apontavam para o fracasso inevitável.  Não, ele não a amava.  Nem ela o amava tampouco.  Se ele fosse belo, ao menos estaria justificada a sua insensatez, já que parafraseando Vinícius, os feios que me perdoem, mas a beleza é essencial. Mas nem isso ele era.  Não era bonito.  Não era forte ou alto.  Não era nada além de um elogio vazio que a fazia sentir que, de alguma forma, ela ainda existia.

O sapato apertava os dedos dos pés e ela já sabia que aquela meia-calça iria incomoda-la em um futuro não muito distante, dado o calor insuportável que estava fazendo naquele dia. Nervosa pela renda da lingerie nunca usada que pinicava seu corpo, beijou  com uma boca insípida o marido antes de entrar em seu carro e seguir para o escritório deixando para trás o aroma do perfume que cuidadosamente havia borrifado nos pulsos e entre os seios.

Ela já tinha tudo arquitetado e todas as desculpas que se fariam necessárias muito bem engendradas.  A audiência seria em outra Comarca o que justificaria a demora além da conta.  Todos sabem que as audiências trabalhistas têm hora para começar mas sabe-se lá deus quando terminam.  São horas e horas infindáveis de espera antes de entrar na sala de audiências, isso sem falar em todo o aborrecimento de ouvir uma a uma as testemunhas que eram sabatinadas pelo magistrado e por cada um dos advogados presentes.  No final estaria tão tarde que ela, muito cautelosa, preferiria alugar um quarto de hotel qualquer para passar a noite e não ter que dirigir durante a noite, já que ela não enxergava muito bem quando lhe cruzava algum farol contrário.

Era a primeira vez que iria trair o marido. O fazia sem remorso ou tristeza. A verdade é que há muito tempo que sua vida se mostrava um labirinto sem saída.  Seu pai uma vez disse que quando a necessidade batia a porta, o amor fugia envergonhado pela janela e estava claro que o amor já havia abandonado o barco, que pouco a pouco afundava.

Por vezes a vida perde o sentido.  Por vezes nada tem gosto ou cheiro que cative.  Por vezes o vazio do desemparo nos faz perambular como cascas ocas, buscando algo que nos preencha.  Que lhe atire a primeira pedra quem nunca sentiu os braços pesarem depois do esforço inútil de remar um barco encalhado na areia da praia.  Fazia tempo que ela remava sozinha o barco do seu casamento e ninguém no mundo todo tinha o direito de julgá-la, a não ser ela mesma.  E deus bem sabe que ela o fazia.

Quando abriu a porta de entrada do escritório onde trabalhava, carregando a pequena maleta que a acompanharia em sua audiência inventada, se deparou com a sala da recepção tomada pelos outros advogados, todos, boquiabertos enquanto miravam a televisão instalada no canto do cômodo, logo acima da mesa da secretária, que sentada em sua cadeira estava a ponto de deslocar seu pescoço para também assistir aos acontecimentos.  Os sofás de veludo verde e encosto de alvenaria já estavam ocupados pelos clientes que seriam atendidos na primeira hora da manhã e que igualmente olhavam perplexos para o jornal da manhã que mostrava a notícia urgente.

Mas ela não tinha tempo para todo aquele alvoroço e passou reto por todos direto para sua sala que era a primeira à direita no corredor de tacos de madeira.  Acomodou sua bagagem de mão em uma das cadeiras de atendimento e se sentou à frente do computador.  Pensou em trabalhar um pouco até que ele chegasse na hora combinada, mas a falta de foco causada pela ansiedade trazida pela possibilidade do encontro furtivo fez com que voltasse até a recepção em busca do café salvador.

Todos permaneciam exatamente da forma como ela os havia deixado poucos minutos antes, quando deslizou silenciosamente pela sala ampla que ostentava um magnífico piso de mármore branco.  Enquanto servia o líquido quente na pequena xícara branca, atraída pelo olhar dos outros, viu no pequeno aparelho a imagem colorida de uma grande torre de onde saia um canudo de fumaça.  Ainda tentava interpretar o que via quando notou um outro avião atingir a torre vizinha, idêntica à primeira.

Atônita, ela esqueceu do café enquanto assistia bolas de fogo saindo dos prédios em chamas, que alguns minutos depois ruíram ao chão criando um cenário de guerra que era retratado nos mínimos detalhes pelos repórteres que estavam no local.  Na pequena tela ela viu pessoas cobertas por cinza que perdidas caminhavam sob o chão branco e preto.  Uma mulher tentava arrumar com uma das mãos a mecha do cabelo que caia em seu rosto coberto por fuligem enquanto a outra tapava a boca e o nariz com um pedaço de roupa rasgada da qual não se podia mais discernir a cor.

O café derramado no pires lhe tingia a ponta dos dedos, enquanto ela assistia as pessoas se jogando das janelas do edifício na tentativa desesperada de fugir do calor das chamas, caindo - uma a uma - como grandes pássaros sem asas.  – “Somos todos pássaros sem asas” – pensou ela se lembrando da gaiola de Rubem Alves, que era feita de palavras iguais as das gaiolas daqueles que haviam causado aquela revoada de pássaros humanos.

Me espanta a complexidade do espírito humano, que no ímpeto de se livrar de sua condição de impermanência e efemeridade constrói castelos de certeza feitos de poeira e cuspe.  No afã de buscar alento para a única certeza inexorável que pesa sobre todos nós, dedicam gerações e gerações para moldar seus intrincados sistemas religiosos, políticos, filosóficos que acabam por se tornar seu modo de vida.  Até aí poderíamos chamar de liberdade – de pensamento e de expressão. O grande problema é que homem não é simples.  Moldado que é no reflexo do outro, precisa sempre de validação para a ilusão que cria.  E nessa complexidade passa a exigir que tudo e todos vivam pelos seus ditames e regras, pois essa é a única forma de se manter no controle do seu medo. 

Me lembro bem desse medo vestido de raiva nas conversas com meu filho adolescente, que a todo momento questionava o meu modo de vida com suas certezas e convicções revolucionárias.  Medo amargo que podia ser traduzido em uma frase:  “Seu merdinha, quem você pensa que é para questionar tudo aquilo em que eu acredito?”  Obviamente ele não sabia que minha ira era apenas medo de que ele estivesse de alguma forma certo, e que tudo aquilo em que eu acreditava e acreditei não passava de uma incerteza, fazendo com que todos os sacrifícios que fiz tivessem sido em vão.  O que fazer com o desalento quando se descobre que era possível e legítimo ter feito tudo de outro jeito?

Enquanto ela assistia pessoas que se jogavam em queda livre, também se viu Ícaro que despertava em pleno ar percebendo as asas de cera.  O encontro era a queda.  Seu casamento, o prédio em chamas.

Ela não se encontrou com ele naquele ou em qualquer outro dia.  Se sentiu profundamente envergonhada por ter usado um evento tão terrível como estopim de reflexão sobre uma vida tão banal quanto a sua.  Mas todos sabemos que quanto mais individual, mais terrível é a tragédia.  Não nos é dado sentir a dor do outro na exata proporção que por ele é sentida.  Talvez seja por isso que a nossa dor é sempre a maior que há, por mais que possamos reconhecer que refugiados da Síria estão a sofrer muito mais do que nós.

Naquele instante, quando via a dor do outro no extremo de tudo o que há, enquanto assistia o fim do mundo chegar para tantos atores estranhos em um filme distante e, envergonhada, se regozijava  por não ser uma das atrizes, ela entendeu que ainda havia saída. Percebeu que a violência e as ameaças de seu companheiro eram amarras às quais ela mesma havia se submetido e a queda na qual estava prestes a se lançar era apenas fuga da decisão que há tempos precisava ser tomada.

Viu com clareza que o escape ensaiado era o motivo que ele precisava para que sua raiva fosse além dos tapas e gritos que lhe faziam doer a carne e a alma para finalmente se manifestar em algo mais terrível e definitivo.  Era o caminho sem volta para a tragédia anunciada que ela se recusava a ver, mas que estava a espreita desde o início.

Mais de duzentas pessoas caíram em queda livre naquele dia, mas ela não foi uma delas. 

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